A FISCALIDADE DAS QUADRIGAS (1)
A problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia
Na Grécia e na Roma antiga os administradores de impostos não se chegaram a lembrar de tributar as quadrigas, mas desde meados do século passado que os nossos Ministros das Finanças descobriram nas modernas quadrigas, puxadas a cavalos que não são os verdadeiros, uma forma de arrecadar apreciáveis receitas para compor os orçamentos.
O tema que hoje se trata tem a ver com a problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia.
A Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, que aprovou o OE 2021, veio mais uma vez alterar as regras da tributação em matéria de admissão de veículos usados provenientes de outros países da União Europeia.
A República Portuguesa, sabendo que estava em curso no Tribunal de Justiça da União Europeia um processo intentado pela Comissão Europeia em 23 de abril de 2020, (Processo n.º C/169/2020), visando especificamente a legislação automóvel portuguesa, talvez tendo a perceção da ilegalidade da tributação, decidiu, antes mesmo de ser conhecido o acórdão comunitário, alterar o artigo 11.º da Lei n.º 22-A/2007, que aprovou o CISV.
Trata-se de uma controvérsia muito antiga, que começou mal Portugal entrou na CEE. Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 405/87, de 31 de Dezembro, que revogou o IVVA e, no âmbito do Imposto Automóvel (IA), foi instituída uma tributação dos veículos usados igual à dos veículos novos, ou seja, fosse o veículo novo, ou usado com 10 anos, o IA era igual, desincentivando totalmente a admissão de veículos automóveis provenientes de outros países.
Desde a referida data, muitas alterações foram efetuadas ao regime fiscal automóvel, umas pela persuasão da Comissão e outras por força do acatamento de acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, no sentido de eliminar as barreiras fiscais e técnicas que se colocam à legalização de veículos provenientes de outros Estados Membros.
Em acórdão de 16 de junho de 2016, o TJUE (Processo n.º C – 200/15), já tinha considerado que a República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado Membro, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.
Para realizar a conformação do direito nacional com a jurisprudência comunitária, o legislador nacional publicou a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, conformação essa que mais uma vez não respeitou a jurisprudência comunitária.
Em acórdão de 2 de setembro de 2021, o Tribunal de Justiça veio condenar a República Portuguesa, afirmando que o ISV ao não respeitar a condição de não discriminação de veículo usado importado relativamente aos veículos nacionais, uma vez que a desvalorização do veículo usado importado de outro EM não é tida em consideração para efeitos da aplicação da respetiva componente ambiental, aquando da primeira matrícula do veículo em Portugal, violou objetivamente o artigo 110.º do TFUE como foi reconhecido no acórdão do Tribunal de Justiça.
Ficou assim aberto o caminho para que o Tribunal Constitucional julgue alguns processos que tem pendentes sobre a matéria resultantes de recursos interpostos pela AT.
Por exemplo, a AT recorreu para o Tribunal Constitucional de uma sentença proferida em 24 de abril de 2020, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada – Processo n.º 616/17.6BEALM, que julgou procedente, por provada, a impugnação do ISV e, em conformidade, determinou a anulação do ato de liquidação do ISV impugnado e a consequente restituição do montante de € 3.543,33 pagos pelo Impugnante, acrescido de juros indemnizatórios calculados desde 12 de Dezembro de 2016, até à data de emissão da respetiva nota de crédito, mais tendo condenado a Fazenda Pública nas respetivas custas judiciais, por ter sido a parte vencida.
O caso respeita a um particular que em 2016 procedeu à admissão de um veículo da marca «BMW» proveniente da República Federal da Alemanha, que tinha como data de primeira matrícula 3 de setembro de 2009 e que pagou o ISV que lhe foi liquidado provisoriamente, não tendo chegado a recorrer ao método de avaliação.
Esta sentença somou-se a outra do mesmo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, embora escrita por punho de juiz diferente, em que tinha sido dado razão à importadora de um outro veículo igualmente usado, e mandado anular o ISV e a taxa de avaliação que tinham sido pagos aquando da regularização.
A mudança operada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, com o objetivo de conformar a legislação fiscal automóvel com o direito comunitário, no entanto, em nosso entender, acabou por trazer mais desconformidades e ilegalidades do que aquelas que existiam na anterior legislação, não só no plano comunitário mas agora também no plano nacional. Quer o acórdão de 2 de setembro de 2021, quer a conformação da atual legislação serão analisadas com mais detalhe em próximo artigo.
António Melo Gonçalves
Advogado
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