A problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia – 3

ISV Ilegalidade

A FISCALIDADE DAS QUADRIGAS (3)

 A problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia – 3

Na Grécia e na Roma antiga os administradores de impostos não se chegaram a lembrar de tributar as quadrigas, mas desde meados do século passado que os nossos Ministros das Finanças descobriram nas modernas quadrigas, puxadas a cavalos que não são os verdadeiros, uma forma de arrecadar apreciáveis receitas para compor os orçamentos.

 

A tributação da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia rege-se pelo artigo 11.º n.º 1 e 3 do Código do Imposto sobre Veículos, referindo o n.º 1 que são objeto de liquidação provisória nos termos das regras do código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas numa denominada tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos.

Refere o n.º 3 do mesmo artigo que sem prejuízo da referida liquidação provisória, se o sujeito passivo (importador) entender que o montante do imposto apurado nos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação de uma determinada fórmula que indica, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto.

Neste artigo irão ser tecidas algumas considerações sobre esta taxa que os importadores de automóveis usados tem de pagar, caso não aceitem a liquidação com base na redução pelas tabelas de antiguidade.

As taxas integram-se na categoria dos tributos e são um mal necessário, dado que se destinam, em certa medida, a financiar entidades públicas que disponibilizam serviços que satisfazem determinados tipos de necessidade de natureza essencialmente individual.

Há uma estrutura bilateral, seja porque corresponde à prestação de um serviço público, à admissão da utilização de bens do domínio público ou à remoção de um limite jurídico à atividade dos particulares, isto é visam cobrar o aproveitamento dessas facilidades.

A questão do valor das taxas transporta-nos para um domínio pouco transparente, dado que, sendo receitas das entidades, há uma tendência para essas entidades empolarem esses custos, colmatando crónicas insuficiências orçamentais.

O caso da taxa de avaliação prevista no n.º 3 do artigo 11.º do CISV não foge a essa regra, mas tem implicações diferentes da generalidade das outras taxas aplicáveis.

O ato de avaliação subjacente ao pedido do proprietário do veículo de utilização de uma fórmula, só ocorre pela necessidade de se proceder à reparação de uma insuficiência do sistema normativo nacional, que não prevê que os veículos tenham um adequado valor de cobrança do imposto interno, que observe o ordenamento comunitário.

O direito interno não garante imediatamente a conformidade com o direito comunitário num plano de igualdade, discriminando entre os sujeitos passivos que importam veículos e aceitam as percentagens de redução fixadas no n.º 1 do artigo 11.º, os quais são dispensados do pagamento da taxa de avaliação, dos restantes que, por não concordarem, ficam obrigados ao respetivo pagamento.

Conforme consta da Portaria n.º 44/2011, de 26 de janeiro, atualizada pela Portaria n.º 1297/2013, de 4 de outubro, as taxas de avaliação encontram-se fixadas num montante de 200 € quando a avaliação é executada exclusivamente a partir da análise de documentos referentes a publicações especializadas do sector ou de 300 €, no caso de também se verificar a verificação física dos veículos.

Para evitar ser penalizada pelo automatismo, os importadores de automóveis usados são obrigados a suportar os custos de uma taxa de avaliação fixada em termos bastante elevados, e que constitui um fator de dissuasão das admissões dos próprios veículos, reforçando, por via indireta, os objetivos de proteção do mercado nacional de usados em detrimento dos veículos importados, sem ter quaisquer garantias de que da sua aplicação resulte a liquidação de um imposto conforme com o do direito comunitário.

Trata-se de importâncias que vão muito para além do que seria razoável fixar, tendo em conta, por exemplo os montantes que se pagam pelas inspeções técnicas ordinárias (31,49 euros) ou mesmo extraordinárias (cerca de 110 euros), a cargo das entidades afetas à segurança rodoviária.

No caso dos veículos usados, é ao particular que cabe reunir todos os elementos e fazer essa demonstração, cabendo à Administração um mero papel de validação da informação prestada.

A fixação da taxa de avaliação num tal montante é suscetível de ser considerada violadora do direito comunitário que a República Portuguesa se comprometeu a respeitar como decorre do artigo 8.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Na aceção dos artigos 28.º e 30.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, a taxa de avaliação pode ser vista como uma medida de efeito equivalente a uma discriminação fiscal interna, uma vez que se trata de um encargo pecuniário exigido por ocasião da admissão de um veículo que tem por efeito causar sobre a livre circulação de mercadorias (automóveis) os mesmos efeitos restritivos de um direito aduaneiro, agravada pelo facto de tal encargo ter um efeito discriminatório e protecionista da produção nacional.

A jurisprudência é antiga mas continua atual, assim tendo acordado o Tribunal de Justiça, em 01.07.1969, no processo Comissão contra Republica Italiana (24/68) e, conforme o mesmo tribunal, apenas condições muito específicas poderiam justificar que o não fosse, conforme acórdãos de 25.01.1977, Bauhuls (46/76), de 09.11.1983, Comissão contra Dinamarca (158/82), ou de 31.05.1979, Denkavik (132/78).

Em conclusão, em nosso entender, em razão dos respetivos montantes, mediante uma adequada fundamentação jurídica, há condições para ver reconhecida judicialmente a ilegalidade da taxa de avaliação, por desconformidade com o direito comunitário

António Melo Gonçalves
Advogado

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A FISCALIDADE DAS QUADRIGAS (2)

 A problemática da admissão dos veículFisos usados provenientes da União Europeia – 2

Na Grécia e na Roma antiga os administradores de impostos não se chegaram a lembrar de tributar as quadrigas, mas desde meados do século passado que os nossos Ministros das Finanças descobriram nas modernas quadrigas, puxadas a cavalos que não são os verdadeiros, uma forma de arrecadar apreciáveis receitas para compor os orçamentos. 

No último artigo, tinha sido referido que o Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de setembro de 2021, tinha condenado a República Portuguesa, afirmando que ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no CISV, na redação que foi dada pela Lei n.º 71/2018, a mesma não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do Tratado.

No momento em que foi publicado o referido acórdão, a legislação visada já não se encontrava em vigor, uma vez que o legislador nacional, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2021, tinha dado nova redação ao artigo 11.º do CISV.

A questão que se coloca é qual o alcance da aplicação do referido acórdão às admissões de veículos que se processaram enquanto a referida legislação declarada desconforme esteve em vigor.

Durante esse período, mais de cem mil veículos usados foram admitidos e a legislação que tinha emergido do acórdão de 16 de junho de 2016 (Processo C-200/15) foi-lhes aplicada, com o referido vício da desconformidade.

Há prazos para reclamar, recorrer hierarquicamente e impugnar os atos de liquidação resultantes da aplicação das leis fiscais em vigor, mas, à luz do momento em que foi publicado o acórdão, todos esses prazos se mostram ultrapassados, dado que, desde 1 de janeiro de 2021, a legislação já era outra, pelo que, se os interessados não impugnaram esses atos aquando da introdução no consumo, já não se podem socorrer destes meios jurídicos para discordar legalmente da tributação.

O único meio para suscitar a apreciação das liquidações que foram efetuadas é por via da revisão oficiosa a levar a cabo por iniciativa da AT. Com efeito, o artigo 78.º n.º 1 da Lei Geral Tributária prevê que «A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.».

Por sua vez o n.º 3 dispõe que «A revisão dos atos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respetivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior.»

Dados os automatismos existentes não há veículo matriculado sujeito ao ISV que não tenha pago o imposto, pelo que a iniciativa depende sempre da AT com fundamento em erro imputável aos serviços.

Todavia esta iniciativa da AT, por um lado não é uma faculdade mas sim um dever e, por outro a apreciação do erro imputável aos serviços, abrange não só o erro material ou de facto mas também o erro de direito.

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 4 de abril de 2016 (Processo 407/15), refere que «é hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do ato tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (…) também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento».

Sobre o segundo aspeto, a AT argumentará sempre que se limitou a aplicar a lei que estava em vigor e que os funcionários que praticaram os referidos atos não poderiam ter agido de outro modo, mas, todavia, o Acórdão do STA de 14 de março de 2012 (Processo 1007/2011) dispõe que o erro imputável aos serviços, compreende não só o lapso material ou o erro de facto como, também, o erro de direito e essa imputabilidade aos serviços é independente da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro».

Em conclusão, é impensável que face à publicação do acórdão do Tribunal de Justiça, de 2 de setembro de 2021, a AT vá oficiosamente proceder à revisão de todas as liquidações potencialmente abrangidas, essencialmente por duas razões: uma de ordem financeira, dado que todas as revisões iriam importar devoluções de imposto em montantes variáveis e ninguém se voluntaria para distribuir dinheiro e outra, por tal, implicar uma enorme sobrecarga administrativa, com afetação de recursos humanos necessários para outras tarefas.

Em face disto, a única solução é os interessados que tenham admitido veículos usados no período em apreço – anterior à vigência da Lei n.º 75-B/2020, e que ainda não tenha decorrido o prazo de 4 anos sobre a liquidação do imposto, apresentarem pedidos de revisão oficiosa do ISV à AT, a qual tem o dever de lhes dar seguimento, sob pena de se poder recorrer os tribunais para a obrigar a essa revisão.

Já quanto ao montante a pedir, perfilham-se várias soluções.

A mais óbvia é pedir o montante correspondente à não consideração da desvalorização ambiental. Todavia, não se deve excluir a possibilidade de, mediante uma adequada fundamentação jurídica, efetuar pedidos mais ambiciosos, como seja a devolução de todo o ISV pago.        

António Melo Gonçalves
Advogado

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