A problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia – 2

ISV Ilegalidade

A FISCALIDADE DAS QUADRIGAS (2)

 A problemática da admissão dos veículos usados provenientes da União Europeia – 2

Na Grécia e na Roma antiga os administradores de impostos não se chegaram a lembrar de tributar as quadrigas, mas desde meados do século passado que os nossos Ministros das Finanças descobriram nas modernas quadrigas, puxadas a cavalos que não são os verdadeiros, uma forma de arrecadar apreciáveis receitas para compor os orçamentos. 

No último artigo, tinha sido referido que o Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de setembro de 2021, tinha condenado a República Portuguesa, afirmando que ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no CISV, na redação que foi dada pela Lei n.º 71/2018, a mesma não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do Tratado.

No momento em que foi publicado o referido acórdão, a legislação visada já não se encontrava em vigor, uma vez que o legislador nacional, através da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2021, tinha dado nova redação ao artigo 11.º do CISV.

A questão que se coloca é qual o alcance da aplicação do referido acórdão às admissões de veículos que se processaram enquanto a referida legislação declarada desconforme esteve em vigor.

Durante esse período, mais de cem mil veículos usados foram admitidos e a legislação que tinha emergido do acórdão de 16 de junho de 2016 (Processo C-200/15) foi-lhes aplicada, com o referido vício da desconformidade.

Há prazos para reclamar, recorrer hierarquicamente e impugnar os atos de liquidação resultantes da aplicação das leis fiscais em vigor, mas, à luz do momento em que foi publicado o acórdão, todos esses prazos se mostram ultrapassados, dado que, desde 1 de janeiro de 2021, a legislação já era outra, pelo que, se os interessados não impugnaram esses atos aquando da introdução no consumo, já não se podem socorrer destes meios jurídicos para discordar legalmente da tributação.

O único meio para suscitar a apreciação das liquidações que foram efetuadas é por via da revisão oficiosa a levar a cabo por iniciativa da AT. Com efeito, o artigo 78.º n.º 1 da Lei Geral Tributária prevê que «A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.».

Por sua vez o n.º 3 dispõe que «A revisão dos atos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respetivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior.»

Dados os automatismos existentes não há veículo matriculado sujeito ao ISV que não tenha pago o imposto, pelo que a iniciativa depende sempre da AT com fundamento em erro imputável aos serviços.

Todavia esta iniciativa da AT, por um lado não é uma faculdade mas sim um dever e, por outro a apreciação do erro imputável aos serviços, abrange não só o erro material ou de facto mas também o erro de direito.

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 4 de abril de 2016 (Processo 407/15), refere que «é hoje jurisprudência consolidada que, podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do ato tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação, ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (…) também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento».

Sobre o segundo aspeto, a AT argumentará sempre que se limitou a aplicar a lei que estava em vigor e que os funcionários que praticaram os referidos atos não poderiam ter agido de outro modo, mas, todavia, o Acórdão do STA de 14 de março de 2012 (Processo 1007/2011) dispõe que o erro imputável aos serviços, compreende não só o lapso material ou o erro de facto como, também, o erro de direito e essa imputabilidade aos serviços é independente da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro».

Em conclusão, é impensável que face à publicação do acórdão do Tribunal de Justiça, de 2 de setembro de 2021, a AT vá oficiosamente proceder à revisão de todas as liquidações potencialmente abrangidas, essencialmente por duas razões: uma de ordem financeira, dado que todas as revisões iriam importar devoluções de imposto em montantes variáveis e ninguém se voluntaria para distribuir dinheiro e outra, por tal, implicar uma enorme sobrecarga administrativa, com afetação de recursos humanos necessários para outras tarefas.

Em face disto, a única solução é os interessados que tenham admitido veículos usados no período em apreço – anterior à vigência da Lei n.º 75-B/2020, e que ainda não tenha decorrido o prazo de 4 anos sobre a liquidação do imposto, apresentarem pedidos de revisão oficiosa do ISV à AT, a qual tem o dever de lhes dar seguimento, sob pena de se poder recorrer os tribunais para a obrigar a essa revisão.

Já quanto ao montante a pedir, perfilham-se várias soluções.

A mais óbvia é pedir o montante correspondente à não consideração da desvalorização ambiental. Todavia, não se deve excluir a possibilidade de, mediante uma adequada fundamentação jurídica, efetuar pedidos mais ambiciosos, como seja a devolução de todo o ISV pago.        

António Melo Gonçalves
Advogado

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